"Dom", sobrinha de Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)
"Eu digo que ele é meu pai, meu avô, meu tio, é meu tudo"
"Dom" manteve uma relação muito próxima com o tio Amílcar Cabral durante a infância e a juventude. Essa proximidade custou a toda a família uma constante vigilância, e por vezes tortura, por parte da PIDE. Já adulta e em Moçambique, "Dom" viveu a alegria da independência, seguida de uma vinda para Portugal.
Amílcar Cabral tratava-a pela alcunha "Dom", pois em criança era para ter sido chamada Aldonça. "Dom" nasceu em Cabo Verde em 1942. Perdeu a mãe ainda não tinha um ano de idade e foi viver com a avó materna e algumas tias e tios que a criaram. Viveu com a família na Cidade da Praia até aos seis anos de idade, altura em que se mudaram para a Guiné-Bissau. Quando tinha 13 anos, Amílcar Cabral mandou toda a família de volta para Cabo Verde como forma de a manter em segurança. Aí viveu cerca de mais dois anos. Durante esse período conheceu aquele que viria a tornar-se seu marido. Regressou para Bissau com a família, onde viveu até aos 18 anos, altura em que se casou e partiu para Moçambique. Aí viveu com o marido e os três filhos na cidade de Nampula até 1977. Trabalhou como funcionária do governo português no Registo Civil. Após a independência, partiu para Portugal, de onde não mais saiu.
Sofria por ser sobrinha de Amílcar Cabral?
Sofria por não o ver, sofria por saber que era perseguido por causa da política, sofria por estar longe... mas o que é que eu havia de fazer? Toda a família acabava por levar por tabela, toda. Aliás, a nossa porta na Guiné-Bissau era sempre muito bem guardada pelos polícias da PIDE. Era num canto e no outro, sempre. E ele nem vivia connosco, isto acontecia só por ele estar envolvido na política. Bastava sermos família dele. Toda a gente pagou pela política do Amílcar Cabral. Mas ele fez muito bem, por isso é que o povo ainda hoje gosta dele. Aliás, é uma das figuras que jamais morrem.
Ele foi assassinado.
Foi, na Guiné, em Conacri. E foi assassinado em frente a uma filha já da segunda mulher que hoje tem 38 anos e que nessa altura só tinha seis anos. Ela estava na janela à espera do pai. Quando ele parou o carro e entrou na garagem, deram os três tiros.
Alguma vez chegaram a saber quem cometeu o crime?
Falou-se... Uns dizem que foi o Spínola, outros dizem que foram os próprios elementos do partido... Porque nessa altura ele fez um discurso e os colegas, os da cúpula dele, foram presos e depois libertados. A ele mataram-no.
E os irmãos?
Ele tinha as duas irmãs gémeas e um irmão, o António Cabral, mas tinha mais irmãos da parte do pai. Um desses irmãos acabou por ser o Presidente da Guiné-Bissau, o Luís Cabral. Depois também sofreu um golpe de estado e veio viver para Portugal. Este também me tratava como sobrinha. A família estava acima de tudo para todos eles.
Orgulha-se dele?
Além de orgulhar, tenho muita tristeza. Em muitas situações que aconteceram na minha vida, se ele fosse vivo e estivesse ao meu lado, eu teria sido muito mais feliz. Tínhamos uma relação muito forte. A vida depois de ele nos deixar piorou muito, passámos um bocado complicado.
Chegou a viver com ele?
Quando era criança, sim. Até quando ele veio para Portugal para estudar Engenharia Agrícola – eu já tinha uns sete, oito anos. De vez em quando, muito raramente, ele ia a Cabo Verde de férias, mas depois quando acabou o curso foi nomeado para prestar serviço na Guiné e na Guiné-Bissau, numa granja, que é uma estância de agricultura. Ele foi tomar conta daquilo e nessa altura nós também já tínhamos ido para a Guiné-Bissau.
Eram próximos?
Muito. Ele era muito meu amigo. Foi ele que incentivou a minha avó a ficar comigo. Ele sempre foi muito amigo das crianças. Sempre protegeu os amigos, as crianças e o povo em geral. Como a minha mãe estava doente e o meu pai estava fora da Cidade da Praia, onde nós vivíamos, ele resolveu que eu fosse viver com eles. Eu tinha 11 meses nessa altura. E daí fiquei. Mas foi ele que quis que eu fosse viver com ele. Eu digo que ele é meu pai, meu avô, meu tio, é meu tudo. Porque foi graças a ele que eu sou o que sou.
Acompanhou as actividades em que ele estava envolvido?
Bem, acompanhei, mas eu ainda era muito jovem, criança praticamente – eu tinha os meus 12, 13, 14 anos... Sabe que nessa altura as crianças quase não ouviam as conversas dos adultos. Portanto, eu sabia que se havia criado um partido, que era o PAIGC, mas os adultos falavam e as crianças não se metiam. Eles todos os dias à noite iam fazer uma reunião lá nessa coisa ou então em casa... Isto já na Guiné-Bissau, porque o partido foi criado na Guiné-Bissau. Eles faziam essas reuniões, duas, três vezes por semana – ele e muitas outras pessoas.
Na sua casa?
Na casa dele e noutras casas. Na minha casa mesmo, como éramos três crianças a morar lá, nunca faziam reunião, para que nós não déssemos com a língua nos dentes. Mas, claro, eu era mais velha, dava conta das coisas. E depois, pronto, começou aquela confusão toda e, quando a PIDE começou a apertar, ele pegou em nós e mandou-nos para Cabo Verde para evitar problemas. Ele nessa altura tinha sido mandado para Portugal, então não foi connosco. Ele morava ali na Avenida 24 de Julho. Passado algum tempo, resolveu mandar-nos para a Guiné-Bissau outra vez.
Ele manteve sempre essa preocupação em relação à família?
Sim, sim, sempre. Ele sempre teve muita preocupação com o povo em geral e principalmente com a família. O pai dele deixou a mãe dele, casou com uma outra, mas ele cresceu e resolveu tomar conta da família. Por isso é que ele nunca abandonou a mãe, nem os irmãos, nem quem estivesse com ele. Ele tornou-se pai de todos nós.
Então enquanto cresceu sempre se apercebeu do que se passava.
Claro, tínhamos a PIDE sempre à porta. O meu tio, que era irmão dele, o António Cabral, foi muitas vezes chamado pela PIDE, muitas vezes preso de madrugada, muitas vezes torturado. Era interrogado durante a noite, durante o dia e depois mandavam-no embora. Até uma das irmãs gémeas dele, que agora têm 84 anos, foi chamada várias vezes. Todos nós sofremos na pele as situações dele.
Ele esteve presente no seu casamento?
Constou, à boca pequena, que ele esteve em Bissau, porque ele de vez em quando lá aparecia mas assim de passagem... Nessa altura ele estava na luta armada mas, de vez em quando, aparecia. Como a PIDE andava em cima dele, em cima de todos nós mas também dele, claro que ele vinha clandestinamente. Vinha uma noite ou coisa assim e depois ia-se embora. Ao meu casamento ele não foi, apenas apareceu por lá. Falou-se, mas eu não o vi. Mas ouvi dizer que sim e que foi falar com a minha avó, que era mãe dele. Com a PIDE sempre em cima era difícil saber. Até quando me casei e fui de barco para Angola, a PIDE foi comigo.
Como é que foi esse casamento?
Eu casei-me por procuração. Ele [o marido] já estava desde 1957 em Moçambique e eu estava na Guiné-Bissau. Nessa altura, quando ele foi [para Moçambique], eu só tinha ainda 16 anos. A minha avó não aceitou que ele me levasse porque eu era muito nova. Então fiquei, só depois de dois anos e tal é que nos casámos e eu fui ter com ele. Aí já tinha 18 mas, mesmo assim, como naquela altura a maioridade era aos 21, a minha avó teve de me dar a emancipação para eu me poder casar. No dia do casamento é claro que ele não estava presente. Eu estava na Guiné-Bissau e ele estava em Moçambique. Quem fez de marido foi um tio dele. Passados dois meses eu embarquei para Moçambique.
Como é que tomaram essa decisão?
Ele já me tinha pedido em casamento antes, quando eu tinha 16 anos, mas como a minha avó não aceitou o casamento ele foi-se embora. Mas todas as semanas recebia duas, três cartas dele. E eu também respondia. Quando nos decidimos casar, ele escreveu aos meus familiares. E casei-me. Eu casei-me para poder ir ter com ele! De outra forma eu não podia ir, a minha gente não me deixava. Tinha de me casar primeiro.
Seguiu-se uma grande viagem.
Foi quase um mês! Aliás, foi quase um mês de viagem mas, só em interrupções de espera de um barco e espera do outro, foram quase seis meses. Foi de Fevereiro a Agosto. Nessa altura faziam muitos barcos de Cabo Verde e Guiné para Portugal, e também outras áfricas, então eu fui de avião até Cabo Verde e depois em Cabo Verde apanhei um barco até Angola. De Angola o barco seguiu para Moçambique.
Em Moçambique já viveu a guerra.
Sim, mas eu nunca estive no meio da guerra, eu estive sempre na cidade de Nampula. Ouviam-se os aviões a chegar e nós pensávamos logo "são os coitados da guerra", porque em geral os aviões de militares chegavam e muitas vezes traziam feridos, entre outras coisas. Mas nunca tive contacto com a guerra porque sempre vivi na cidade. Nunca ouvi nenhum tiro!
Era a favor da independência?
Eu sentia que realmente o povo moçambicano não estava preparado, não foi preparado para sofrer, para enfrentar uma independência. Porque durante o tempo em que eu lá estive, que foram ainda uns bons anos, eu notei que quem mandava e quem tinha todos os poderes eram os portugueses. O africano, o moçambicano em si, não tinha condições. Alguns tinham cursos, estudavam no liceu, mas quando chegava a hora do emprego em condições não eram eles que tinham hipóteses. O meu medo foi o que depois aconteceu – tomaram a independência e hoje está como está. Eu acho que naquela altura foi muito precipitado. Mereciam a independência, sim, mas foi muito precipitado. Deviam ter sido preparados primeiro, instruídos para uma independência. Mas chegaram a uma certa altura que “vamos à independência” e os portugueses deram a independência. Foi muito giro, muito bonito, eu até ajudei muito, trabalhei muito por aquilo.
Como é que recebeu a notícia da independência?
A notícia já sabíamos que ia chegar. A independência foi um acontecimento de que todos nós estávamos à espera e que foi recebido com alegria e com a convicção de que aquilo era para melhor e de que não tínhamos necessidade de deixar o país. Nessa altura ainda ninguém pensava em ter de abandonar o país. Todos nós que tínhamos lá ficado até à independência estávamos convictos que ali havíamos de continuar.
Como foi vivido o dia das celebrações?
Ah, o dia da independência foi vivido com todo o amor que mereceu porque foi uma coisa muito bonita, foi muito bem organizada. O ambiente era de euforia, de alegria, de paz, de felicidade... Toda a gente estava satisfeita. Cantavam-se lá os hinos todos, aquelas cerimónias todas. Aliás, no mesmo dia, na mesma hora, em todas as cidades houve a cerimónia de arriar e içar a bandeira. E então era o governo português de um lado, os militares portugueses, e os militares da FRELIMO do outro. Fizeram aquela cerimónia toda e depois viu-se o receber da bandeira, com palmas, choros, gritos e tudo. Era muita gente, muita mesmo. E de ambas as partes! Porque havia muitos portugueses que estavam conscientes da independência e a queriam também. Havia muita gente, muitos portugueses que adoravam o país... E depois tiveram de vir embora, porque depois da independência as coisas começaram a complicar de tal forma, pessoas a serem presas, pessoas a serem mal tratadas... Aquele ódio, aquela revolta.
Contra os portugueses?
Era dos dois lados. Eram os portugueses contra os africanos, os africanos contra os portugueses, cada um com a sua razão. E então pronto, os que lá estavam para ficar resolveram arrumar a mala rumo a Portugal. Nós ainda ficámos lá durante dois anos e tal, a seguir à independência, porque a nossa ideia não era vir embora, mas depois de começarmos a ver várias prisões dos funcionários públicos, principalmente das Finanças...
Por que razão faziam isso?
Porque houve muita gente que fazia algumas aldrabices enquanto funcionários e depois pagaram uns pelos outros.
Que tipo de aldrabices?
Por exemplo, para sair de Moçambique, as Finanças tinham de passar um papel, que eles chamavam o "papel azul", onde dizia que ninguém devia sair sem ter pago os impostos. Houve alguns funcionários das Finanças que, à troca de algum dinheiro, passaram esses papéis e alguns comerciantes fugiram sem pagar. Pronto, quando deram conta começaram a prender, os secretários das Finanças principalmente. Quem eles achassem que tivesse culpa, prendiam. E muitos pagaram sem ter culpa nenhuma.
Quais foram as principais diferenças sentidas entre o antes e o depois da independência?
As diferenças não eram muitas, era uma reviravolta da vida onde todos os que nós conhecíamos estavam a fugir para Portugal. Muitos arrumavam a mala e, numa noite, desapareciam.
Sentia medo?
Medo, sim. Era preciso assegurar o futuro e era um bocado complicado, principalmente para quem tivesse os filhos a crescer. Algumas pessoas só não vieram embora mesmo na altura, quando começaram a fazer prisões por nada, porque não podiam. Porque houve muita gente que se pudesse, vinha. Todos aqueles que conseguiam vir, vieram.
Aquando da independência de Moçambique, era cidadã portuguesa.
Naquela altura aquilo era português e nós estávamos lá como portugueses, como todos os outros portugueses que lá estavam. Só havia diferença entre o preto e o branco.
Em 1977 saiu de Moçambique e veio para Portugal. Optou por ficar com nacionalidade portuguesa. Essa decisão foi fácil de tomar?
Foi fácil sim porque eu já tinha os meus 12 anos de trabalho como funcionária do governo português em Moçambique, o meu marido já tinha os seus 20 e tal anos também. Não íamos deixar isso cair por terra e começar tudo de novo e com um futuro incerto. Uma pessoa com 50 anos a ter de começar a contar o tempo de trabalho de novo era um bocado complicado. Então não tivemos outro remédio se não arrumar a mala e toca a andar para Portugal.
Nessa altura já tinha os seus filhos?
Já, já tinha os meus três filhos. Quando eu vim embora o meu mais novo já tinha quatro anos.
Ter crianças pesou na decisão?
Não, não... Bem, sim. Era mais uma razão, porque eles podiam ter ficado e crescido lá, até tínhamos condições, havia escolas em Lourenço Marques, universidade e tudo, mas houve alguns contratempos que... Não dava para ter os filhos. Porque havia muitos complexos e preconceitos.
Entre quem?
De tudo, de tudo. Uns pelos outros, outros pelos outros. Aquilo ali não havia cor nem raça, aquilo... é a independência! É a guerra! Pronto.
Que tipo de preconceitos existiam?
Por exemplo, se um africano vivia muito bem e tinha boas condições, bom carro e não sei quantos, o outro africano achava que esse tinha manias de branco, que estava com manias de grandeza, então começava uma certa perseguição. Por exemplo, como a minha filha tem uma pele clara alguns colegas começaram a dizer que ela tinha a mania de ser branca e não sei quantos. E uma vez lá na brincadeira na escola começaram a dizer que ela tinha que ir para um campo de reeducação.
Isso era o quê?
Aconteceu com uma sobrinha minha. Juntaram-se todos e fizeram uma festa de fim de curso e então a Ministra apareceu lá por acaso e resolveu mandar tudo para o campo de reeducação – professores, alunos, todos! Iam para um sítio ermo, mato, sem casas... não tinha nada! Era um barracão e metiam-nos lá durante meses.
Mas as crianças?
Crianças, jovens e professores também.
Enviavam as crianças para esses campos sem nada dizerem aos pais?
Não, não, aquilo era tipo prisão. E os pais tinham de aguentar, se não também iam. Nem se podia dizer nada.
O que é que faziam lá?
Nada. Iam lá, estavam lá! Estavam lá, tipo prisão. Não faziam nada. E não tinham condições nenhumas. O objectivo deles era reeducar. Porque os miúdos tinham tendência a ser colonialistas, então tinham de ter as formas de educação deles. Era um bocado complicado para jovens que já tinham feito o 7º ano. 7º ano antigo, não é o de agora. O actual 12º! A minha filha não foi para a reeducação porque a tirei de lá [Moçambique] na altura, porque se não com 11 anos também ia! Ia qualquer pessoa, de qualquer idade, desde que não estivesse de acordo com aquilo que eles queriam.
Esses campos já existiam antes da independência?
Nada disso. Isto só surgiu depois da independência, com a FRELIMO. Foi para lá a minha sobrinha, foram para lá professores amigos, foram para lá várias pessoas minhas conhecidas, até que foram saindo um a um. E aconteceu que a minha filha estava a brincar e disse lá não sei o quê contra uma pessoa qualquer, então disseram que a mandavam para a reeducação. Eu disse "não, não vai". Peguei nela e mandei-a para a Guiné-Bissau, para ao pé dos meus familiares. Esteve lá dois anos e tal, mais o irmão, e depois da Guiné vieram para Portugal, nós já cá estávamos. Eu fui lá buscá-los e trouxe-os para cá.
Quando veio para Portugal garantiram-lhes condições?
Nós para virmos tivemos de fazer um acordo com o governo português e o governo moçambicano. Foi um contracto que nós fizemos de dois anos com os dois governos em que, quando quiséssemos vir, continuávamos como funcionários portugueses. Tínhamos direito a trazer o recheio da nossa casa, o carro e a pôr aqui metade do ordenado. Foi o que nós fizemos e depois viemos. Quando cá pisámos, continuávamos a ser funcionários do governo português, não do governo moçambicano.
Como foi ter de deixar Moçambique?
Muita gente chorava, porque tinha de se desfazer da casa, disto e daquilo... Eu encarei tudo isso com tanta tranquilidade. Desfazer-me da casa, fazer os contentores, trazer os contentores para Portugal...
E chegando cá como foi?
Chegando cá, foi uma confusão até sermos integrados nos nossos postos de trabalho. Levou tempo, cerca de dois anos. Alguns dos que vinham, que não eram funcionários, tinham regalias do IARN [Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais], mas nós não. Nós como funcionários portugueses que já tínhamos posto aqui dinheiro não tínhamos direito a nada a não ser à nossa custa. E uma parte de vencimento – pagaram-nos 70% do ordenado até sermos integrados no trabalho.
Chegando cá tiveram de se desenrascar.
Desenrascar, essa é que é a palavra certa. Tivemos de nos desenrascar e tratar dos nossos assuntos, da nossa documentação, para termos os direitos que tínhamos.
Arrependeu-se em algum momento?
Não. Foi difícil, porque foi praticamente começar tudo de novo, mas não me arrependo.
Era a primeira vez que estava em Portugal?
Não, já tinha vindo duas vezes de férias. Tinha vindo com o que chamavam a Licença Graciosa. De quatro em quatro anos, quem não fosse natural de Moçambique e fosse funcionário português tinha direito à tal Licença Graciosa, que era ir de férias, sair de lá. Mas quando cheguei já era completamente diferente. Já era outro regime, as pessoas estavam muito mais nervosas. A descolonização alterou muito as pessoas, de ambas as partes, os que vinham e os que já cá estavam. Ouviam-se muitas bocas... "Vai para a tua terra!", e nós não íamos, estávamos na nossa terra! Nós éramos portugueses!
Gostou de viver em Moçambique?
Muito. O ambiente era outro, a vida era mais liberta, as pessoas eram mais amigas. Não havia ninguém que se encontrasse consigo de carro numa estrada ou num caminho que não parasse a dizer "olha lá, onde é que tu vais?" e ia-te levar, o que não acontece em Portugal. A forma de viver é mais liberta. Aqui é muito mais fechado. Mas, claro, tem de se aprender a viver. África é assim, o africano é assim. Eu acho que a mentalidade é viver a vida, porque a morte é certa. Cá em Portugal não: amealha a vida, porque a morte não importa!
Nunca se sentiu injustiçada por viver uma guerra que não era sua?
Não. Porque eu acho que a mentalidade do africano é que somos todos iguais, seja lá onde estivermos, não importa o país. Quando houve a independência de Moçambique, simultaneamente houve em Cabo Verde, em Angola, na Guiné... Ser daquele país não interessava, tinha de ser assim. Isso é forma de ser de cada pessoa. Há quem se encha de ódio, de tristeza, de rancor. Eu não, eu vou vivendo o tempo. Eu não me deixo martirizar por nenhuma situação que aconteça, uma vez que há que vivê-la. Viveu, esqueceu, passou – vamos em frente. É a minha forma de ser.
Por tantos países onde passou, diria que pertence a qual?
Eu sou do mundo. É a minha forma de ser, eu sou do mundo. Se agora eu for para a China, torno-me chinesa.