Irmãos da Esquizofrenia
A vida de quatro irmãos mudou subitamente quando, em momentos dramáticos, um distúrbio mental grave se manifestou em dois deles: a esquizofrenia. Para os dois jovens acostumados à vida do campo, a cidade tornou-se protagonista dos mais profundos abalos. A doença vinha para ficar, condenando para sempre o futuro da família.
A mulher estaciona o automóvel e entra no edifício. O lugar é novo e limpo e incrivelmente branco. A mulher passa pela recepção, onde outras duas falam ao telefone, e, sem perder tempo, segue por um corredor lateral. Pela segurança com que opta pela direcção, percebe-se que já conhece bem todos os caminhos por aqui. Ao abrir a primeira porta, encontra uma sala de estar onde uma dúzia de outras mulheres descansa sentada em sofás. Boa tarde, diz uma que faz questão de se levantar do seu lugar. Olá, repete outra três vezes até obter resposta. Os seus rostos revelam a baralhação que lhes mora dentro. Os corpos parecem ocupados por espíritos inquietos que os fazem mover como calha, sem nenhuma ponderação. Num ápice umas quantas cercam-na. A nossa mulher retribui os cumprimentos sem grande surpresa, afasta-se e segue pelo resto do corredor, onde ao fundo está um elevador que sobe até ao primeiro piso. Uma vez no andar superior, opta por novo caminho, que, pela firmeza dos seus passos, diríamos que conhece de cor. Ao encontrar-se por fim com uma senhora muito bem arrumadinha dentro de uma bata azul-bebé, cessa a marcha e pede: pode chamar a Filomena Sandinha, por favor?
Ao fundo do corredor, pode ver-se a Filomena a vestir um casaco com a ajuda da auxiliar. Quando vê por fim a irmã, esboça um sorriso que depressa se transforma em riso feliz. A auxiliar acompanha-a até à outra extremidade do corredor e entrega-a à mulher, como se se tratasse de uma criança. Agora que estão as duas juntas, lado a lado, percebe-se o quão são parecidas, embora estacionadas em pontos distintos do tempo. Como se uma fosse a versão antiga da outra. As duas beijam-se e a nossa mulher pergunta à senhora da bata que ainda não desapareceu: ela tem estado bem? A resposta parece ter sido decorada e repetida mil vezes contra uma parede: tem estado benzinha, sim senhora.
A nossa mulher retoma a marcha, fazendo todo o caminho de volta e levando agora a irmã pelo braço. A marcha é lenta e pausada, como se já não houvesse pressas. Entram no elevador, estão de novo no andar rasteiro, atravessam a sala de estar. Uma das mulheres no sofá ainda exclama: olha a Sandinha! Mas esta parece anestesiada, parada num sítio muito longínquo, e nem sequer reage. Deixa-se apenas levar pela irmã, como se estivesse por fim aconchegada num regaço protector. As duas abandonam o edifício e entram no veículo. Ao arrancarem pode ainda ler-se ao fundo, em letras muito bem desenhadas: Casa de Saúde da Idanha.
A nossa mulher chama-se Lúcia. É a terceira de quatro irmãos nascidos numa aldeia perdida no interior do país – Vale Serrão seu nome. Ainda crianças, os quatro tiveram de abandonar a escola devido à morte precoce do pai. Assim foram trabalhar para o campo. Colhiam resina, cavavam a terra, andavam quilómetros em jejum até chegarem às suas hortas. Lúcia recorda esses tempos. Pela manhã, ela e Filomena, mais velha, saiam da sua casa antiga de pedra para ir ajudar a mãe na agricultura. A Mena nunca gostou do trabalho do campo, diz Lúcia, fazia sempre birras para não ter de ir para a horta. A mãe, boazinha, dizia-lhe que se quisesse não tinha de ir. Mas ia. Todos iam, mesmo que contrariados. Filomena, contudo, não deixava para trás o amuo: devia vir o fogo e fazer arder todos os pinheiros, rogava enquanto lhes tirava a resina para, mais tarde, vender.
As duas irmãs nunca se deram excepcionalmente bem. Eram muito diferentes, o que originava por vezes desacatos. Filomena era inconformada e exigente. Lúcia entendia que era preciso ajudar a família e não se deixava amedrontar pelos sacrifícios. A mais velha cedo acabou por fugir da aldeia rumo a Lisboa. Aí começou por trabalhar numa rede de sapatarias. Algum tempo depois, arranjou lugar para a irmã mais nova na empresa e chamou-a para a capital. Lúcia, que já tinha dado conta da falta de perspectivas de futuro na aldeia, aceitou e foi ter com a irmã à cidade grande. Moravam juntas na casa de familiares, também já fixados em Lisboa. Dividiam uma pequena cama onde mal cabiam dois corpos, mas não se queixavam. Tudo era melhor que o trabalho duro do campo que tinham deixado para trás. Trabalharam juntas durante sete anos, enviando sempre para casa parte do dinheiro que amealhavam para ajudar a mãe perdida lá nos montes.
Com 22 anos, a vida de Filomena parecia encaminhada. Trabalhava, ganhava o seu dinheiro, até já tinha arranjado namorado na capital. A relação, contudo, não durou o tempo que ela esperava. Quando o rapaz terminou o namoro, Filomena entrou num estado de depressão. Lúcia lembra-se da mudança drástica que o acontecimento provocou no comportamento da irmã. Isolou-se completamente – em casa ou no trabalho não falava com ninguém, explica Lúcia. Ficou de tal forma perturbada que se demitiu do emprego e foi-se embora de Lisboa. A Filomena, que nunca havia gostado da vida no campo, fugiu da cidade e voltou para a sua aldeia.
O automóvel segue por uma estrada estreita até se aproximar de um largo portão, no qual se lê Casa de Saúde do Telhal. Depois de o atravessar e estacionar o veículo, Lúcia ajuda a irmã a sair do carro e caminham as duas em direcção aos pavilhões mais afastados do parque de estacionamento. Pelo caminho, vão conversando sobre os assuntos mais vulgares, que vão desde a roupa à própria morte. Filomena pede que a irmã na próxima visita lhe traga uma saia pregueada e uma mala, ao mesmo tempo que antevê que há-de ir para o inferno. Lúcia ri-se e diz-lhe que não seja tonta. Ouve as queixas, os lamentos e não perde o optimismo. Até que Filomena lhe pergunta pela mãe. A nossa mulher conta 12 anos desde que a velhota desapareceu, facto que nunca foi capaz de anunciar à irmã. Não o fez principalmente aconselhada pelos médicos, que receiam o abalo que tal notícia possa provocar ao estado de saúde de Filomena. A mãe lá está na terra, responde Lúcia por fim. Leva-me para ao pé dela, pede então Filomena e a irmã mais nova fica sem ter o que lhe retribuir.
A caminhada é um pouco longa e gelada, resultado dos ventos da serra de Sintra que se fazem ali sentir durante todo o ano. As duas mulheres atravessam por fim um longo jardim até a um último edifício. Pelo caminho, cruzam-se com vários homens que parecem ignorar a sua presença. Alguns fumam sentados em bancos, outros dormem nos mesmos; ninguém parece preocupado com o que se passa em volta. Ao chegarem então ao pavilhão, tocam à campainha e esperam de braços dados, protegendo-se do frio e uma à outra. Quando o enfermeiro vem com o seu molho de chaves na mão e abre a porta, as duas entram e Lúcia manda chamar o Reis. Já todos a conhecem e ela não precisa de dizer mais que isso. Passados alguns minutos, a descer um longo corredor cheio de portas laterais, vê-se um homem com a mão dentro do bolso das calças, ligeiramente curvado, acompanhado pelo enfermeiro. Reconhece as irmãs, beija-as e sorri como pode. Os três têm os mesmos olhos, que são verdes como os do pai, embora os do homem sejam ligeiramente azulados. É ele o Reis, o senhor que já parece um velhinho e ainda só tem 58 anos.
Manuel é o mais velho dos quatro irmãos. Foi aquele que assumiu o papel de pai de família, quando esse desapareceu sem que ninguém o esperasse. De imediato se ergueu e pôs mãos à obra para que os irmãos não morressem à fome. Lúcia recorda-se das inúmeras vezes que foi com o irmão para o Zêzere pescar. Ele havia construído um barco frágil de madeira que usavam para apanhar o peixe. Todos os dias, antes do anoitecer, o ritual se cumpria: irmão e irmã desciam a pé os montes até ao rio, onde colocavam as redes, presas numa das margens. Na manhã seguinte, dentro do barquito, lá regressavam e as recolhiam, já repletas de peixes. Carpas, eiroses, achigãs – várias eram as espécies que se apanhavam naquela altura. Por vezes a pescaria era de tal forma farta que, não conseguindo comer todo o peixe, a família dava o que sobrava à vizinhança. Manuel sempre foi muito trabalhador. Encarregava-se das tarefas mais pesadas, de modo a poupar os irmãos mais novos. Por vezes até dormia na adega para não perder tempo e ir trabalhar no campo mais cedo no dia seguinte, conta Lúcia, que sempre teve uma grande afinidade com este irmão. Era quase como se ele fosse nosso pai, termina.
Manuel foi o primeiro dos quatro a abandonar a aldeia. O passaporte de saída foi um emprego no Porto de Lisboa, como estivador, ainda não tinha 20 anos. Passado cerca de um ano de estar na capital, ofereceram-lhe trabalho em Portimão, como vendedor a prestações, e assim rumou a Sul. Foi aí que a vida se alterou. As complicações começaram aos 21 anos, quando teve um acidente de mota e sofreu um traumatismo craniano. Após a recuperação, e passado cerca de um ano, teve outro desastre na estrada – desta vez ao conduzir um automóvel, numa noite de trovoada. Manuel atropelou uma mulher que se atravessou de rompante em frente ao veículo e que acabaria por morrer. O caso foi a tribunal e o jovem saiu absolvido – apurou-se o estado de embriaguez da mulher e a impossibilidade do condutor poder ter reagido ao seu surgimento na estrada. Mas nem esse desfecho lhe trouxe mais paz de espírito. Lúcia conta que, durante todo o processo, Manuel foi constantemente perseguido e ameaçado pela família da mulher, de etnia cigana. Sozinho no Algarve, sem família por perto em quem se apoiar, foi ficando cada vez mais frágil psicologicamente. Nas vezes que vinha de visita a Lisboa, as irmãs tentavam levá-lo ao médico, o que ele sempre recusou. Deixou de dormir, de descansar. Quando o distúrbio aumentou, Manuel deixou mesmo de trabalhar; já nada do que se passava à sua volta parecia afectá-lo. As irmãs acabariam por interná-lo no Hospital Júlio de Matos, de onde ele fugia constantemente. Uma vez apareceu-me de pijama no armazém do calçado onde eu trabalhava, diz Lúcia. Chegou mesmo a estar desaparecido durante três dias, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Fomos a todos os hospitais, polícia, até chegámos a ir reconhecer um corpo na morgue, conta a irmã agoniada. Ao fim do terceiro dia, a mãe ligou para Lisboa a dizer que Manuel tinha aparecido na terra, de táxi. Chegava com os pés a sangrar, sinal dos quilómetros que tinha calcado, ninguém sabe entre que terras e por que lugares.
Os três irmãos dirigem-se para o bar na instituição, em passo ligeiramente apressado, porque a aragem é cada vez mais fria. Manuel vai à frente, com os olhos colados ao chão, e Lúcia segue-o logo a seguir, tentando acelerar Filomena, que está mais vagarosa. Ao chegarem por fim, Lúcia dirige-se ao balcão, onde compra lanche para todos. Os irmãos já estão sentados numa das mesas. Comportam-se como dois desconhecidos, desinteressados na presença um do outro, cada um concentrado nos seus próprios espíritos. Apenas Filomena parece de repente lembrar-se de quem é aquele homem ao seu lado e pega-lhe na mão, enquanto pergunta: estás bonzinho, Manel? Ele revela uma doçura inimaginável quando, no meio dos seus pensamentos, acena com a cabeça e a olha de frente. Mas a irmã parece nem saber como reagir – apenas solta um riso oco que soa como pedido de auxílio no meio do bar quase vazio.
O mais novo dos quatro irmãos, José, é saudável. Acabou por se fixar na cidade de Portimão, para onde foi cuidar das coisas de Manuel quando este as abandonou. Devido à distância, não está tão presente na vida dos irmãos quanto Lúcia. Esta acaba por ser o grande alicerce na vida de Filomena e Manuel que, se não fosse a irmã, raramente teriam visitas – algo que não é invulgar para muitos dos doentes internados nestas instituições. Ela olha-os como se se tratassem de duas crianças a quem tem de prestar cuidados e dar atenção. Manuel passa toda a visita a falar sozinho, a pronunciar coisas incompreensíveis e a rir-se, como se pequenos seres, pousados nos seus ombros, passassem todo o tempo a contar-lhe graçolas aos ouvidos. Depois de Lúcia o chamar algumas vezes seguidas, ele lá parece despertar e sintonizar-se no modo que lhe permite dar atenção à irmã apenas por breves segundos. Onde foram a semana passada, Manel?, pergunta-lhe ela. À praia, responde ele, e o som sai-lhe de forma abafada, como se lhe custasse verbalizar. Fuma os cigarros que Lúcia lhe trouxe com uma pressa voraz, um atrás do outro, como se corressem o risco de desaparecer dentro de pouco tempo. Da mesma forma, come o bolo e a sandes que a irmã lhe traz para a mesa com uma gana que ilustra a vontade de engolir tudo de uma só vez.
No período em que os três estão juntos, não se pode dizer que o sossego exista. São constantemente interrompidos por outros doentes, homens velhos e homens jovens, que ora pedem um cigarro, ora pedem uma moedinha para o café. Lúcia já não estranha, há mais de 30 anos que visita mensalmente o lugar e até conhece alguns doentes pelo nome. Surgem e desaparecem de repente, sem pedir licença, como fantasmas a deambular pelo espaço. Mesmo os mais bem vestidos, com melhor aspecto e noção, não se importam de interromper e meter conversa, na necessidade atroz de terem um rosto novo a quem se dirigir. A minha mãe veio cá visitar-me o mês passado, diz um enquanto puxa uma cadeira e se senta à mesa com os três irmãos. Lúcia dá dois dedos de conversa e, secretamente, sente que daria tudo para conseguir trocar palavras como aquelas com o irmão, que há muito não sabe que mundo habita.
Quando ficaram doentes, tanto o impulso de Manuel como o de Filomena foi o de regressar a casa, para junto da mãe. Chegaram mesmo a estar os dois doentes, ao mesmo tempo, na terra, com uma mãe sozinha e cansada sem ter como dar conta de tal tarefa. Depois da última fuga de Manuel do Hospital Júlio de Matos, ninguém conseguiu voltar a trazê-lo para Lisboa. Durante cinco anos, ficou na aldeia, sem acompanhamento médico. Não trabalhava, não saía sequer de casa. O homem activo e solidário que todos conheciam foi desaparecendo, dando lugar a um estranho. Manuel foi ganhando hábitos que até aí nunca tinha revelado – começou a beber, a fumar, deixou de se lavar, de aparar o cabelo ou a barba. Parecia um Cristo, diz Lúcia. Quando se tornou agressivo, os irmãos mais novos decidiram trazê-lo à força de volta para Lisboa. A mãe, que se tinha tornado a principal vítima do estado de saúde do filho, pediu que o deixassem ficar. Mesmo sofrendo, preferia tê-lo por perto.
Depois de uma consulta na Casa de Saúde do Telhal, Manuel ficou internado. Filomena, que ainda havia ficado na aldeia, também foi de seguida trazida para Lisboa pelos irmãos e internada na Casa de Saúde da Idanha. Em ambos foi diagnosticada esquizofrenia aguda.
Olhando hoje para os dois, Lúcia acredita que estão agora melhores do que na altura em que os foi buscar a casa. Sem outros parentes em quem confiar, sente-se totalmente responsável pelos irmãos. Todos os meses, quando visita um, visita também o outro e tenta que entre os dois o contacto não se perca. Os seus estados de saúde são irreversíveis; nunca mais poderão ser pessoas independentes e completamente sãs. A medicação ajuda a que se sintam mais calmos, mas não os cura. O estado de Manuel, apesar de pior, parece descansar mais a irmã. Ele está sempre a rir-se, nada o apoquenta, diz Lúcia. Já Filomena não abandonou o espírito de desânimo que a caracterizava. Como tem noção do que se passa à sua volta, entristece-se mais facilmente, o que preocupa a irmã. A morte e os pecados são os assuntos que mais latejam na sua mente, pelo menos entre os que ela deixa saber.
Ao saírem do bar, tudo em volta é silêncio. Subitamente, de um dos pavilhões mais próximos começa a soar uma música da banda britânica The Cure. A circunstância é irónica. É final da tarde e o vento é cada vez mais frio. Mas as janelas do edifício próximo estão abertas e o som ecoa por todo o átrio: it’s a big bright beautiful world just the other side of the door. Alguém terá aumentado o volume da aparelhagem no descuido de se julgar sozinho em casa. Manuel pára para fumar um último cigarro antes de voltar para o seu pavilhão e as irmãs sentam-se ao seu lado. Nenhum dos três percebe o que querem dizer as palavras que lhes chegam aos ouvidos, mas parecem apreciar o momento musical. Examinando agora com alguma distância, a imagem não deixa dúvidas aos mais atentos: são ali três crianças sozinhas no mundo com os olhos a brilhar. Nem a nossa mulher, de passos sempre seguros, o consegue disfarçar. E depois, junto a eles, escondido que nem um rato, lá está o quarto elemento: uma esquizofrenia velha e sabida que, sem piedade, se ri e faz troça dos pequenos.
Ao fundo do corredor, pode ver-se a Filomena a vestir um casaco com a ajuda da auxiliar. Quando vê por fim a irmã, esboça um sorriso que depressa se transforma em riso feliz. A auxiliar acompanha-a até à outra extremidade do corredor e entrega-a à mulher, como se se tratasse de uma criança. Agora que estão as duas juntas, lado a lado, percebe-se o quão são parecidas, embora estacionadas em pontos distintos do tempo. Como se uma fosse a versão antiga da outra. As duas beijam-se e a nossa mulher pergunta à senhora da bata que ainda não desapareceu: ela tem estado bem? A resposta parece ter sido decorada e repetida mil vezes contra uma parede: tem estado benzinha, sim senhora.
A nossa mulher retoma a marcha, fazendo todo o caminho de volta e levando agora a irmã pelo braço. A marcha é lenta e pausada, como se já não houvesse pressas. Entram no elevador, estão de novo no andar rasteiro, atravessam a sala de estar. Uma das mulheres no sofá ainda exclama: olha a Sandinha! Mas esta parece anestesiada, parada num sítio muito longínquo, e nem sequer reage. Deixa-se apenas levar pela irmã, como se estivesse por fim aconchegada num regaço protector. As duas abandonam o edifício e entram no veículo. Ao arrancarem pode ainda ler-se ao fundo, em letras muito bem desenhadas: Casa de Saúde da Idanha.
A nossa mulher chama-se Lúcia. É a terceira de quatro irmãos nascidos numa aldeia perdida no interior do país – Vale Serrão seu nome. Ainda crianças, os quatro tiveram de abandonar a escola devido à morte precoce do pai. Assim foram trabalhar para o campo. Colhiam resina, cavavam a terra, andavam quilómetros em jejum até chegarem às suas hortas. Lúcia recorda esses tempos. Pela manhã, ela e Filomena, mais velha, saiam da sua casa antiga de pedra para ir ajudar a mãe na agricultura. A Mena nunca gostou do trabalho do campo, diz Lúcia, fazia sempre birras para não ter de ir para a horta. A mãe, boazinha, dizia-lhe que se quisesse não tinha de ir. Mas ia. Todos iam, mesmo que contrariados. Filomena, contudo, não deixava para trás o amuo: devia vir o fogo e fazer arder todos os pinheiros, rogava enquanto lhes tirava a resina para, mais tarde, vender.
As duas irmãs nunca se deram excepcionalmente bem. Eram muito diferentes, o que originava por vezes desacatos. Filomena era inconformada e exigente. Lúcia entendia que era preciso ajudar a família e não se deixava amedrontar pelos sacrifícios. A mais velha cedo acabou por fugir da aldeia rumo a Lisboa. Aí começou por trabalhar numa rede de sapatarias. Algum tempo depois, arranjou lugar para a irmã mais nova na empresa e chamou-a para a capital. Lúcia, que já tinha dado conta da falta de perspectivas de futuro na aldeia, aceitou e foi ter com a irmã à cidade grande. Moravam juntas na casa de familiares, também já fixados em Lisboa. Dividiam uma pequena cama onde mal cabiam dois corpos, mas não se queixavam. Tudo era melhor que o trabalho duro do campo que tinham deixado para trás. Trabalharam juntas durante sete anos, enviando sempre para casa parte do dinheiro que amealhavam para ajudar a mãe perdida lá nos montes.
Com 22 anos, a vida de Filomena parecia encaminhada. Trabalhava, ganhava o seu dinheiro, até já tinha arranjado namorado na capital. A relação, contudo, não durou o tempo que ela esperava. Quando o rapaz terminou o namoro, Filomena entrou num estado de depressão. Lúcia lembra-se da mudança drástica que o acontecimento provocou no comportamento da irmã. Isolou-se completamente – em casa ou no trabalho não falava com ninguém, explica Lúcia. Ficou de tal forma perturbada que se demitiu do emprego e foi-se embora de Lisboa. A Filomena, que nunca havia gostado da vida no campo, fugiu da cidade e voltou para a sua aldeia.
O automóvel segue por uma estrada estreita até se aproximar de um largo portão, no qual se lê Casa de Saúde do Telhal. Depois de o atravessar e estacionar o veículo, Lúcia ajuda a irmã a sair do carro e caminham as duas em direcção aos pavilhões mais afastados do parque de estacionamento. Pelo caminho, vão conversando sobre os assuntos mais vulgares, que vão desde a roupa à própria morte. Filomena pede que a irmã na próxima visita lhe traga uma saia pregueada e uma mala, ao mesmo tempo que antevê que há-de ir para o inferno. Lúcia ri-se e diz-lhe que não seja tonta. Ouve as queixas, os lamentos e não perde o optimismo. Até que Filomena lhe pergunta pela mãe. A nossa mulher conta 12 anos desde que a velhota desapareceu, facto que nunca foi capaz de anunciar à irmã. Não o fez principalmente aconselhada pelos médicos, que receiam o abalo que tal notícia possa provocar ao estado de saúde de Filomena. A mãe lá está na terra, responde Lúcia por fim. Leva-me para ao pé dela, pede então Filomena e a irmã mais nova fica sem ter o que lhe retribuir.
A caminhada é um pouco longa e gelada, resultado dos ventos da serra de Sintra que se fazem ali sentir durante todo o ano. As duas mulheres atravessam por fim um longo jardim até a um último edifício. Pelo caminho, cruzam-se com vários homens que parecem ignorar a sua presença. Alguns fumam sentados em bancos, outros dormem nos mesmos; ninguém parece preocupado com o que se passa em volta. Ao chegarem então ao pavilhão, tocam à campainha e esperam de braços dados, protegendo-se do frio e uma à outra. Quando o enfermeiro vem com o seu molho de chaves na mão e abre a porta, as duas entram e Lúcia manda chamar o Reis. Já todos a conhecem e ela não precisa de dizer mais que isso. Passados alguns minutos, a descer um longo corredor cheio de portas laterais, vê-se um homem com a mão dentro do bolso das calças, ligeiramente curvado, acompanhado pelo enfermeiro. Reconhece as irmãs, beija-as e sorri como pode. Os três têm os mesmos olhos, que são verdes como os do pai, embora os do homem sejam ligeiramente azulados. É ele o Reis, o senhor que já parece um velhinho e ainda só tem 58 anos.
Manuel é o mais velho dos quatro irmãos. Foi aquele que assumiu o papel de pai de família, quando esse desapareceu sem que ninguém o esperasse. De imediato se ergueu e pôs mãos à obra para que os irmãos não morressem à fome. Lúcia recorda-se das inúmeras vezes que foi com o irmão para o Zêzere pescar. Ele havia construído um barco frágil de madeira que usavam para apanhar o peixe. Todos os dias, antes do anoitecer, o ritual se cumpria: irmão e irmã desciam a pé os montes até ao rio, onde colocavam as redes, presas numa das margens. Na manhã seguinte, dentro do barquito, lá regressavam e as recolhiam, já repletas de peixes. Carpas, eiroses, achigãs – várias eram as espécies que se apanhavam naquela altura. Por vezes a pescaria era de tal forma farta que, não conseguindo comer todo o peixe, a família dava o que sobrava à vizinhança. Manuel sempre foi muito trabalhador. Encarregava-se das tarefas mais pesadas, de modo a poupar os irmãos mais novos. Por vezes até dormia na adega para não perder tempo e ir trabalhar no campo mais cedo no dia seguinte, conta Lúcia, que sempre teve uma grande afinidade com este irmão. Era quase como se ele fosse nosso pai, termina.
Manuel foi o primeiro dos quatro a abandonar a aldeia. O passaporte de saída foi um emprego no Porto de Lisboa, como estivador, ainda não tinha 20 anos. Passado cerca de um ano de estar na capital, ofereceram-lhe trabalho em Portimão, como vendedor a prestações, e assim rumou a Sul. Foi aí que a vida se alterou. As complicações começaram aos 21 anos, quando teve um acidente de mota e sofreu um traumatismo craniano. Após a recuperação, e passado cerca de um ano, teve outro desastre na estrada – desta vez ao conduzir um automóvel, numa noite de trovoada. Manuel atropelou uma mulher que se atravessou de rompante em frente ao veículo e que acabaria por morrer. O caso foi a tribunal e o jovem saiu absolvido – apurou-se o estado de embriaguez da mulher e a impossibilidade do condutor poder ter reagido ao seu surgimento na estrada. Mas nem esse desfecho lhe trouxe mais paz de espírito. Lúcia conta que, durante todo o processo, Manuel foi constantemente perseguido e ameaçado pela família da mulher, de etnia cigana. Sozinho no Algarve, sem família por perto em quem se apoiar, foi ficando cada vez mais frágil psicologicamente. Nas vezes que vinha de visita a Lisboa, as irmãs tentavam levá-lo ao médico, o que ele sempre recusou. Deixou de dormir, de descansar. Quando o distúrbio aumentou, Manuel deixou mesmo de trabalhar; já nada do que se passava à sua volta parecia afectá-lo. As irmãs acabariam por interná-lo no Hospital Júlio de Matos, de onde ele fugia constantemente. Uma vez apareceu-me de pijama no armazém do calçado onde eu trabalhava, diz Lúcia. Chegou mesmo a estar desaparecido durante três dias, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Fomos a todos os hospitais, polícia, até chegámos a ir reconhecer um corpo na morgue, conta a irmã agoniada. Ao fim do terceiro dia, a mãe ligou para Lisboa a dizer que Manuel tinha aparecido na terra, de táxi. Chegava com os pés a sangrar, sinal dos quilómetros que tinha calcado, ninguém sabe entre que terras e por que lugares.
Os três irmãos dirigem-se para o bar na instituição, em passo ligeiramente apressado, porque a aragem é cada vez mais fria. Manuel vai à frente, com os olhos colados ao chão, e Lúcia segue-o logo a seguir, tentando acelerar Filomena, que está mais vagarosa. Ao chegarem por fim, Lúcia dirige-se ao balcão, onde compra lanche para todos. Os irmãos já estão sentados numa das mesas. Comportam-se como dois desconhecidos, desinteressados na presença um do outro, cada um concentrado nos seus próprios espíritos. Apenas Filomena parece de repente lembrar-se de quem é aquele homem ao seu lado e pega-lhe na mão, enquanto pergunta: estás bonzinho, Manel? Ele revela uma doçura inimaginável quando, no meio dos seus pensamentos, acena com a cabeça e a olha de frente. Mas a irmã parece nem saber como reagir – apenas solta um riso oco que soa como pedido de auxílio no meio do bar quase vazio.
O mais novo dos quatro irmãos, José, é saudável. Acabou por se fixar na cidade de Portimão, para onde foi cuidar das coisas de Manuel quando este as abandonou. Devido à distância, não está tão presente na vida dos irmãos quanto Lúcia. Esta acaba por ser o grande alicerce na vida de Filomena e Manuel que, se não fosse a irmã, raramente teriam visitas – algo que não é invulgar para muitos dos doentes internados nestas instituições. Ela olha-os como se se tratassem de duas crianças a quem tem de prestar cuidados e dar atenção. Manuel passa toda a visita a falar sozinho, a pronunciar coisas incompreensíveis e a rir-se, como se pequenos seres, pousados nos seus ombros, passassem todo o tempo a contar-lhe graçolas aos ouvidos. Depois de Lúcia o chamar algumas vezes seguidas, ele lá parece despertar e sintonizar-se no modo que lhe permite dar atenção à irmã apenas por breves segundos. Onde foram a semana passada, Manel?, pergunta-lhe ela. À praia, responde ele, e o som sai-lhe de forma abafada, como se lhe custasse verbalizar. Fuma os cigarros que Lúcia lhe trouxe com uma pressa voraz, um atrás do outro, como se corressem o risco de desaparecer dentro de pouco tempo. Da mesma forma, come o bolo e a sandes que a irmã lhe traz para a mesa com uma gana que ilustra a vontade de engolir tudo de uma só vez.
No período em que os três estão juntos, não se pode dizer que o sossego exista. São constantemente interrompidos por outros doentes, homens velhos e homens jovens, que ora pedem um cigarro, ora pedem uma moedinha para o café. Lúcia já não estranha, há mais de 30 anos que visita mensalmente o lugar e até conhece alguns doentes pelo nome. Surgem e desaparecem de repente, sem pedir licença, como fantasmas a deambular pelo espaço. Mesmo os mais bem vestidos, com melhor aspecto e noção, não se importam de interromper e meter conversa, na necessidade atroz de terem um rosto novo a quem se dirigir. A minha mãe veio cá visitar-me o mês passado, diz um enquanto puxa uma cadeira e se senta à mesa com os três irmãos. Lúcia dá dois dedos de conversa e, secretamente, sente que daria tudo para conseguir trocar palavras como aquelas com o irmão, que há muito não sabe que mundo habita.
Quando ficaram doentes, tanto o impulso de Manuel como o de Filomena foi o de regressar a casa, para junto da mãe. Chegaram mesmo a estar os dois doentes, ao mesmo tempo, na terra, com uma mãe sozinha e cansada sem ter como dar conta de tal tarefa. Depois da última fuga de Manuel do Hospital Júlio de Matos, ninguém conseguiu voltar a trazê-lo para Lisboa. Durante cinco anos, ficou na aldeia, sem acompanhamento médico. Não trabalhava, não saía sequer de casa. O homem activo e solidário que todos conheciam foi desaparecendo, dando lugar a um estranho. Manuel foi ganhando hábitos que até aí nunca tinha revelado – começou a beber, a fumar, deixou de se lavar, de aparar o cabelo ou a barba. Parecia um Cristo, diz Lúcia. Quando se tornou agressivo, os irmãos mais novos decidiram trazê-lo à força de volta para Lisboa. A mãe, que se tinha tornado a principal vítima do estado de saúde do filho, pediu que o deixassem ficar. Mesmo sofrendo, preferia tê-lo por perto.
Depois de uma consulta na Casa de Saúde do Telhal, Manuel ficou internado. Filomena, que ainda havia ficado na aldeia, também foi de seguida trazida para Lisboa pelos irmãos e internada na Casa de Saúde da Idanha. Em ambos foi diagnosticada esquizofrenia aguda.
Olhando hoje para os dois, Lúcia acredita que estão agora melhores do que na altura em que os foi buscar a casa. Sem outros parentes em quem confiar, sente-se totalmente responsável pelos irmãos. Todos os meses, quando visita um, visita também o outro e tenta que entre os dois o contacto não se perca. Os seus estados de saúde são irreversíveis; nunca mais poderão ser pessoas independentes e completamente sãs. A medicação ajuda a que se sintam mais calmos, mas não os cura. O estado de Manuel, apesar de pior, parece descansar mais a irmã. Ele está sempre a rir-se, nada o apoquenta, diz Lúcia. Já Filomena não abandonou o espírito de desânimo que a caracterizava. Como tem noção do que se passa à sua volta, entristece-se mais facilmente, o que preocupa a irmã. A morte e os pecados são os assuntos que mais latejam na sua mente, pelo menos entre os que ela deixa saber.
Ao saírem do bar, tudo em volta é silêncio. Subitamente, de um dos pavilhões mais próximos começa a soar uma música da banda britânica The Cure. A circunstância é irónica. É final da tarde e o vento é cada vez mais frio. Mas as janelas do edifício próximo estão abertas e o som ecoa por todo o átrio: it’s a big bright beautiful world just the other side of the door. Alguém terá aumentado o volume da aparelhagem no descuido de se julgar sozinho em casa. Manuel pára para fumar um último cigarro antes de voltar para o seu pavilhão e as irmãs sentam-se ao seu lado. Nenhum dos três percebe o que querem dizer as palavras que lhes chegam aos ouvidos, mas parecem apreciar o momento musical. Examinando agora com alguma distância, a imagem não deixa dúvidas aos mais atentos: são ali três crianças sozinhas no mundo com os olhos a brilhar. Nem a nossa mulher, de passos sempre seguros, o consegue disfarçar. E depois, junto a eles, escondido que nem um rato, lá está o quarto elemento: uma esquizofrenia velha e sabida que, sem piedade, se ri e faz troça dos pequenos.