Reforma da Casa dos Bicos
Porta aberta e obras ao lado
A abertura da Fundação José Saramago na Casa dos Bicos já não tarda. Mas a espera tem sido longa. Vários são os atrasos na restauração do edifício que têm adiado a sua abertura ao público. As obras agradaram a alguns e desagradaram a muitos, não deixando ninguém indiferente na zona do Campo das Cebolas.
Já ninguém traz as vassouras à mão na Rua dos Bacalhoeiros, mas nem sempre foi assim. Ainda há poucas semanas esse era um gesto usual para quem aqui mantinha portas abertas. Hoje as esplanadas estão finalmente montadas, os empregados já esperam de novo no passeio os clientes. A rua está subitamente mais ampla, mais leve, sem cercos que a encubram. Quanto à Casa dos Bicos, está praticamente pronta, restaurada como só o tinha sido em 1982.
A Casa dos Bicos, em Lisboa, tem sido alvo de alterações de modo a albergar a Fundação José Saramago. O período de obras arrastou-se ao longo de vários meses e não deixou ninguém indiferente na Rua dos Bacalhoeiros. Que o digam os comerciantes. José Monteiro, funcionário do restaurante Adega do Atum, localizado mesmo ao lado da Casa, afirma que durante as obras o negócio baixou cerca de 80%. "Para não dizer 100", acrescenta. Devido à desertificação da região, os principais clientes do restaurante são neste momento turistas. Mas, durante o período de obras, as pessoas deixaram de visitar a zona com a mesma afluência. "Ninguém passava aqui", diz José. O lixo e o pó passaram a ser constantes no estabelecimento. Mesmo assim, o empregado garante que nada tem contra o facto de aqui se localizar a nova sede da fundação do Nobel português.
Maria Pinto, proprietária do restaurante Solar dos Bicos, foi também uma das prejudicadas com as construções no edifício vizinho. O "cerco" feito ao "mamarracho da Casa dos Bicos", como o trata, foi de tal forma invasivo que Maria diz mesmo que muitas pessoas julgavam já não haver ali qualquer restaurante. O negócio, claro, ressentiu-se. "Isto tirou-nos muitos clientes", afirma. O mais complicado foi ter de pagar ordenados quando os empregados passavam por vezes horas sem nada fazer, perante a falta de clientela. Contudo, Maria tem esperança de que a situação se reverta com a abertura da fundação e que consiga recuperar dos prejuízos. Perante a época de crise que se vive, considera que não vale a pena pedir qualquer indemnização pelos danos que sofreu. Esta situação não é nova para si – Maria Pinto vive perto do Centro Cultural de Belém e já aí tinha sofrido com as obras do museu. "É típico do português ser paciente e tem sido esse o nosso caso", diz.
Uma senhora ao balcão do restaurante bebe o seu café e comenta: "Então e os turistas? Fartavam-se de andar para cima e para baixo à procura da Casa e nunca a encontravam."
Colada ao monumento está também a loja Artesanato Regional Português. A proprietária revela-se imediatamente incomodada perante o assunto das obras na Casa. Apesar da recusa em tocar no assunto, não esconde o profundo desagrado que sente pelos danos causados pelos demorados restauros no edifício.
Na churrasqueira O Cofre partilha-se mais uma vez este sentimento. Marco Almeida explica: "A Casa tinha uma espécie de muro que não deixava ninguém ver a nossa esplanada". Foi assim durante largos meses. Se tal sacrifício irá trazer benefícios para o comércio local no futuro, ainda ninguém se arrisca a confirmar. Apesar de hoje já se poder ver os estabelecimentos da rua, Marco apenas está certo do que já passou. "Fomos mesmo muito prejudicados – com muitos 'u's na palavra 'muito'!"
Nem tudo são prejuízos
O "muro" colocado à volta da Casa dos Bicos aquando dos restauros causou danos à maior parte dos comerciantes, mas não só – também alguns assaltos se passaram a registar junto à estrutura. Mesmo assim, nem todos estão descontentes. Avançando um pouco na Rua dos Bacalhoeiros, alcança-se o snack-bar Revira Volta. José Duarte e Fernando Reis são dois dos funcionários responsáveis pela boa disposição que se vive dentro do estabelecimento. Aqui, curiosamente, partilha-se um sentimento oposto ao do registado nos locais anteriores. "Bem-dita obra", são as primeiras palavras a serem pronunciadas pelos dois homens.
"Prejuízo? Nada! Os homens das obras vinham cá todos almoçar!", apressam-se os empregados em explicar. Fernando avança: "O impacto foi 100% positivo". E rapidamente José complementa em brincadeira: "O único impacto negativo foi a falta de mulheres. Senti-me triste e revoltado; nem uma engenheira, nem uma senhora da limpeza..." Segundo estes dois funcionários, os trabalhadores da restauração da Casa, além de simpáticos, "comiam bem e bebiam melhor". Para eles, a vinda da fundação para a Casa dos Bicos é algo positivo. "Se servirem cerveja mais barata que a nossa é que vai ser mau!", diz José provocando o riso geral no café.
Junto à Sé de Lisboa, no Pois Café, Catherine Bauer também afirma não ter sentido qualquer diminuição da clientela durante o período das obras. Catherine diz que muitos dos turistas que frequentam o café continuaram sempre a perguntar onde ficava a Casa dos Bicos. Acredita que vários eventos culturais vão passar a ter lugar na Casa, o que só favorecerá a zona.
Obras caras e demoradas
As obras na Casa dos Bicos, construída em 1523, já não terminaram a tempo de encontrar José Saramago vivo. As remodelações terminaram no passado mês de Novembro, depois de muitos atrasos. De tal forma que dos 10 anos de contracto concedidos pela Câmara Municipal de Lisboa ao uso do monumento pela fundação, já só restam seis. O encontro de vestígios arqueológicos durante as obras contribuiu para o atraso.
No total, as obras custaram mais de 23 milhões de euros. Os restauros das fachadas e das estruturas foram financiadas pelo Turismo de Portugal, num valor que ronda os 812 mil euros. As restantes obras custaram 1,5 milhões de euros ao abrigo de um empréstimo bancário que a autarquia de Lisboa contraiu para grandes obras de reabilitação na cidade.
A abertura da Fundação José Saramago na nova sede está prevista para a Primavera de 2012. Nessa altura qualquer pessoa poderá visitar e desfrutar da nova Casa dos Bicos, onde se espera que venham a ter lugar exposições, conferências, cursos e recitais. O público poderá ainda apreciar os vestígios arqueológicos existentes no piso térreo do edifício. Resta saber se mais complicações não ocorrerão até lá.