No interior do país cada vez mais as distâncias enfraquecem os vínculos familiares
Ó, Tempo, volta para trás!
As aldeias de Vale Serrão e Lobatinhos são albergues de vidas cada vez mais envelhecidas e solitárias. Mesmo assim, há quem se recuse a abandoná-las e a esquecer tudo o que já foram e significaram. Duas irmãs vivem nestas aldeias vizinhas e são o rosto do passado e do presente destes lugares. Quanto ao futuro, ainda ninguém sabe onde residirá.
Uma mulher agacha-se, pega num sacho e arranca da terra meia dúzia de batatas. Outra debruça-se sobre a janela e mira o rio que existe para lá das suas hortas. Vistas à distância, são só mais duas idosas perdidas no Portugal profundo. Para quem se aproxima, são duas irmãs a viverem a poucos quilómetros de distância uma da outra, mas que mal se vêem ou comunicam entre si.
A aldeia acorda ao som do sino da capela que faz entoar uma badalada por cada hora que marca o relógio. De todas as ruas a visão é a mesma: longas montanhas verdejantes a perder de vista e o ziguezaguear do Zêzere a acompanhá-las. É este o Vale Serrão, uma aldeia do concelho de Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra, onde sobrevivem ainda algumas casas de xisto e pouco mais que uma dúzia de habitantes.
A D. Maria dos Anjos Real é uma das resistentes – tia Maria, como é tratada na aldeia. É a habitante mais idosa do Vale Serrão, conta já com 94 anos, e vive sozinha há 30, desde que enviuvou. "Sozinha não, Deus está sempre com a gente", corrige ela quem comete este erro de principiante.
Muito lúcida, fala com o entusiasmo de quem tem muito para contar e que, ao mesmo tempo, já teve tudo o que sofrer. Tem quatro filhos – contava cinco até há pouco tempo, mas perdeu um recentemente –, sete netos e sete bisnetos. Sempre trabalhou no campo, ora a cavar as hortas, ora a apanhar resina nos campos. De resto, como a grande maioria dos filhos destas terras.
A tia Maria é a mais velha de oito irmãos. Dos oito, só ela e a mais nova ainda são vivos. É a irmã mais nova a D. Martinha Jesus Real – também conhecida por tia Martinha. Tem 78 anos e vive na aldeia de Lobatinhos. À semelhança da irmã, nasceu e cresceu no Vale Serrão mas casou-se com um homem da aldeia vizinha e para aí foi viver, há já 50 anos. Vive sozinha com o marido, preso numa cadeira de rodas após a queda de uma oliveira durante a apanha da azeitona. Têm três filhos e uma neta.
A tia Martinha traz no discurso, e no rosto, a amargura de ter tido de abraçar uma terra que não é sua. "Eu ia para o Vale Serrão, se ainda valesse... Esta gente nunca foi divertida, não era como na minha terra." Fala sem ânimo acerca da aldeia onde vive, acabando sempre as frases acerca dela com um encolher de ombros.
Cerca de quatro quilómetros separam as duas irmãs, que já não têm outros familiares por perto senão a presença uma da outra. Apesar da curta distância que as separa, raramente se vêem.
Desde cedo começaram a trabalhar e nenhuma das duas frequentou algum dia a escola. A tia Martinha ainda conseguiu aprender a escrever o nome, a irmã mais velha nem isso. "Tomara eu ao menos conhecer os números para telefonar aos meus filhos", diz a tia Maria.
Apesar do pouco contacto que mantêm, ambas parecem estar em sintonia no que toca a uma questão: o sofrimento que tem preenchido as suas vidas. Nenhuma das duas o sabe disfarçar e por vezes, sem querer, lá deixam escapar: "Ai, o que eu tenho sofrido..."
O tempo de duas irmãs
Os dias da tia Martinha começam cedo nos Lobatinhos. No Inverno deixa-se ficar deitada até às 8 horas, mas no Verão por volta das 6h já está de pé. A rotina é sempre a mesma: trata do marido, trata de si e segue para a horta. "Ando o dia todo num vaivém, para lá e para cá", explica.
Os dias da tia Martinha começam cedo nos Lobatinhos. No Inverno deixa-se ficar deitada até às 8 horas, mas no Verão por volta das 6h já está de pé. A rotina é sempre a mesma: trata do marido, trata de si e segue para a horta. "Ando o dia todo num vaivém, para lá e para cá", explica.
Caminha curvada, facto que denuncia todas as horas que passou, e ainda passa, no campo a trabalhar. Aí semeia, sacha, rega e aduba. "Planto várias coisas: milho, feijão-frade e do outro, grão-de-bico, batatas, pimentos, cebolas, tomates, cenouras, alfaces, pepinos...", conta ela. Noutros tempos também teve animais – porcos, cabras e um burro. Hoje em dia mantém apenas as galinhas, dois gatos e um cão, porque o cansaço já não lhe permite cuidar de mais.
Na aldeia ao lado, os dias da tia Maria também nunca fogem à rotina, apesar de esta ser bem menos desgastante do que a da irmã. Passa os dias em casa, sentada, com os olhos postos ora na televisão, ora na janela de onde se avista grande parte da aldeia. No Verão é capaz de passear um bocadinho, mas no Inverno não arrisca sair de perto da lareira. Mesmo assim, não se queixa da solidão. "Vem cá muita visita ao pé de mim. Não passa um dia em que não venha cá alguém visitar-me."
Entre o rio e o isolamento, estas mulheres não trocavam a sua terra por qualquer outro sítio. "Mesmo podendo, não saía de cá", garante a tia Maria. E a sua irmã acrescenta: "Nunca gostei da cidade, gosto mais do campo, da horta". Esta apenas trocaria de bom grado os Lobatinhos pelo seu Vale de nascença. Mas é o conformismo de 50 anos de vida que fala mais alto quando diz, com o olhar rente ao chão: "Ó... mas cá estou. Onde é que eu hei-de ir agora?"
Esse Vale Serrão, tão querido pelas duas, é agora apenas parte do que foi. É o Vale de outros tempos de que as duas irmãs sentem falta e que desejam de volta. Ao lembrarem as histórias antigas e ao olharem para o que agora existe, apodera-se delas a dúvida: por que cordilheiras se terá ele perdido?
O tempo passado
As ruas e as habitações que se encontram hoje ao abandono estiveram, noutros tempos, apinhadas de gente. "Era uma ninhada em cada casa", conta a tia Maria. "Dormiam cinco em cada cama, uns para cima, outros para baixo", recorda.
As dificuldades eram muitas. A tia Maria conta que passou seis anos sem ter um par de sapatos para calçar, enquanto calcava os matos. A fome, essa era real. De 15 em 15 dias ia-se à feira fazer compras; um saco de sardinhas tinha de dar para duas semanas. Uma vez em casa, cada sardinha era ainda dividida ao meio – um comia a cabeça, o outro comia o rabo. A filha mais velha da tia Maria, Filomena Barata, 68 anos, de visita à aldeia, diz lembrar-se de ser criança e ainda passar por estas dificuldades. "O prato do dia era uma sopa de batatas e couves servida num único prato. Todos comiam do mesmo, não havia um prato para cada um. Quem mais comesse, melhor ficava."
Pelas ruelas da aldeia vão-se encontrando inúmeras fontes, agora secas, que remetem para os tempos em que as pessoas, vindas de trabalhar os campos ou de pastar os animais, nelas paravam para saciar a sede. Aqui é lembrança latente na mente de qualquer habitante esses tempos, descritos como de sofrimento, miséria mas, ainda assim, muita alegria.
No Vale Serrão, todos os domingos, assim que o povo chegava da missa na vila – percurso de cerca de nove quilómetros para cada lado que adultos e crianças faziam a pé e, muitas vezes, em jejum – havia bailes. Ao som das guitarras e das flautas, decorriam os arraiais. "Faziam-se umas rodas muito grandes e dançava-se o fado, o vira, a raspadinha, o arregaça... Eram muitas modas!", lembra a tia Maria. E acrescenta: "Era uma vida bonita. A mocidade era mais bonita que agora." Também a tia Martinha sente falta desses tempos. "No Vale Serrão havia muita mocidade e era muito divertido, muito reinadio! E para dançarmos? Ai... Era dançar e tocar e cantar todos domingos e sempre que a gente podia!" Mas de imediato, como esperado, se deixa cair na realidade dos Lobatinhos: "Aqui não, aqui as pessoas não são assim."
No passado, o Vale Serrão foi palco de várias tradições. Na noite de São João era costume acender-se um mastro, feito de mato, um pinheiro e lenha, colocado num largo ao cimo da aldeia. As crianças, à meia-noite, iam a correr beber água às fontes, porque se acreditava vir benzida.
Na aldeia ao lado, os dias da tia Maria também nunca fogem à rotina, apesar de esta ser bem menos desgastante do que a da irmã. Passa os dias em casa, sentada, com os olhos postos ora na televisão, ora na janela de onde se avista grande parte da aldeia. No Verão é capaz de passear um bocadinho, mas no Inverno não arrisca sair de perto da lareira. Mesmo assim, não se queixa da solidão. "Vem cá muita visita ao pé de mim. Não passa um dia em que não venha cá alguém visitar-me."
Entre o rio e o isolamento, estas mulheres não trocavam a sua terra por qualquer outro sítio. "Mesmo podendo, não saía de cá", garante a tia Maria. E a sua irmã acrescenta: "Nunca gostei da cidade, gosto mais do campo, da horta". Esta apenas trocaria de bom grado os Lobatinhos pelo seu Vale de nascença. Mas é o conformismo de 50 anos de vida que fala mais alto quando diz, com o olhar rente ao chão: "Ó... mas cá estou. Onde é que eu hei-de ir agora?"
Esse Vale Serrão, tão querido pelas duas, é agora apenas parte do que foi. É o Vale de outros tempos de que as duas irmãs sentem falta e que desejam de volta. Ao lembrarem as histórias antigas e ao olharem para o que agora existe, apodera-se delas a dúvida: por que cordilheiras se terá ele perdido?
O tempo passado
As ruas e as habitações que se encontram hoje ao abandono estiveram, noutros tempos, apinhadas de gente. "Era uma ninhada em cada casa", conta a tia Maria. "Dormiam cinco em cada cama, uns para cima, outros para baixo", recorda.
As dificuldades eram muitas. A tia Maria conta que passou seis anos sem ter um par de sapatos para calçar, enquanto calcava os matos. A fome, essa era real. De 15 em 15 dias ia-se à feira fazer compras; um saco de sardinhas tinha de dar para duas semanas. Uma vez em casa, cada sardinha era ainda dividida ao meio – um comia a cabeça, o outro comia o rabo. A filha mais velha da tia Maria, Filomena Barata, 68 anos, de visita à aldeia, diz lembrar-se de ser criança e ainda passar por estas dificuldades. "O prato do dia era uma sopa de batatas e couves servida num único prato. Todos comiam do mesmo, não havia um prato para cada um. Quem mais comesse, melhor ficava."
Pelas ruelas da aldeia vão-se encontrando inúmeras fontes, agora secas, que remetem para os tempos em que as pessoas, vindas de trabalhar os campos ou de pastar os animais, nelas paravam para saciar a sede. Aqui é lembrança latente na mente de qualquer habitante esses tempos, descritos como de sofrimento, miséria mas, ainda assim, muita alegria.
No Vale Serrão, todos os domingos, assim que o povo chegava da missa na vila – percurso de cerca de nove quilómetros para cada lado que adultos e crianças faziam a pé e, muitas vezes, em jejum – havia bailes. Ao som das guitarras e das flautas, decorriam os arraiais. "Faziam-se umas rodas muito grandes e dançava-se o fado, o vira, a raspadinha, o arregaça... Eram muitas modas!", lembra a tia Maria. E acrescenta: "Era uma vida bonita. A mocidade era mais bonita que agora." Também a tia Martinha sente falta desses tempos. "No Vale Serrão havia muita mocidade e era muito divertido, muito reinadio! E para dançarmos? Ai... Era dançar e tocar e cantar todos domingos e sempre que a gente podia!" Mas de imediato, como esperado, se deixa cair na realidade dos Lobatinhos: "Aqui não, aqui as pessoas não são assim."
No passado, o Vale Serrão foi palco de várias tradições. Na noite de São João era costume acender-se um mastro, feito de mato, um pinheiro e lenha, colocado num largo ao cimo da aldeia. As crianças, à meia-noite, iam a correr beber água às fontes, porque se acreditava vir benzida.
A data esperada por todos no Vale Serrão era o 8 de Setembro, dia da festa anual da aldeia. Filomena Barata conta: "A minha mãe comprava-nos sapatos e roupa nova para a festa um mês antes. Nesse dia, todos estreávamos uma pecinha nova." A mãe acrescenta: "E era o único dia em que se faziam bolos finos, nos outros era só couves."
No dia da festa, toda a gente ia de manhã, como sempre, trabalhar nas suas hortas. De seguida, havia missa e era preciso esperar o padre ir embora para se poder ir para o baile, que durava até à manhã do dia seguinte. "Com sapatos novos, era só dores nos pés", lembra Filomena no meio de uma gargalhada. "Nesse dia não havia preguiça!"
O tempo presente
A aldeia de Vale Serrão conta actualmente com 14 habitantes e a dos Lobatinhos com sete. Os domingos festivos de outros tempos extinguiram-se, tal como energia vital que fazia avançar estas povoações. As aldeias são hoje espaços que albergam uma população muito envelhecida que já pouco convive entre si. As pessoas passam agora a maior parte do tempo isoladas nas suas próprias casas.
Tanto a tia Maria como a tia Martinha já pouco vão à vila, Pampilhosa da Serra. Se noutros tempos faziam o percurso a pé todas as semanas, agora a idade e o cansaço transformaram-se em obstáculos para estas viagens. Tanto o Vale Serrão como os Lobatinhos recebem semanalmente a visita de uma comerciante da aldeia de Álvaro. Para muitos dos idosos, esta é a única forma de poderem ter acesso a alimentos e a todos os produtos de que vão precisando. A tia Maria explica: "Ela vem cá procurar-me o que eu quero, umas vezes compro, outras não. Mas é ela que cá vem trazer-me as coisas, porque eu já não sou capaz de as ir buscar."
O mesmo acontece com o pão. Quando se ouve algum carro a chegar e o seu buzinar, os habitantes das aldeias já sabem do que se trata. Saem das suas casas, compram o que lhes convém e depressa regressam às suas quatro paredes. Por alguns minutos reúne-se o povo mas, num piscar de olhos, as ruas voltam a ficar desertas.
É esta a realidade das aldeias do interior do país. Caminham a passos largos rumo à não socialização e, mais, à desertificação. Para quem cresceu num ambiente populoso e festivo, é doloroso ter agora de envelhecer rodeado de silêncio e quietude. O mais pequeno sinal de actividade torna-se motivo de alegria. "Quando estou aqui em casa e vejo fumo a sair de alguma chaminé já fico contente", conta a tia Maria enquanto olha pela janela.
O isolamento de que os idosos são vítimas durante grande parte do ano faz com que se sintam pouco seguros. Enquanto o marido esteve hospitalizado, a tia Martinha passou um Inverno sozinha e, muitas vezes, sentiu medo. "Aqui neste monte de pedras a gente tem medo, claro. Quando está cá mais gente, sentimo-nos logo mais seguros."
O tempo futuro
As duas irmãs já pouco crêem no futuro. Apenas uma coisa as distingue: enquanto que a tia Maria já pouco se mexe, a tia Martinha recusa-se a parar. Para esta última, cada dia é uma luta constante. Entre a casa, o marido, as hortas e os animais, o descanso não existe. Já sem a resistência de outros tempos, entristece-a saber que daqui para a frente a sua autonomia e energia só tenderão a diminuir. Já se desfez de vários animais e já não cultiva na maior parte dos seus terrenos. "Sinto-me triste porque tinha as minhas coisas como os outros e agora já não, já não sou capaz de fazer por elas", explica com um ar desolado.
Quanto ao futuro das aldeias, também já poucas esperanças nele depositam. A tia Martinha é precisa nas palavras: "Isto tem tendências de acabar. Se isto não der para mudar e não vierem mais pessoas, acabando estes velhitos..." A mera mas muito provável possibilidade cala tudo em volta. A sentença é dura. Mais ainda na cabeça da tia Martinha que, consciente dos tempos de crise que se vivem, acrescenta a estas outras preocupações. "Eu já não vejo, já cá não estou. Tenho pena é dos meus filhos, se eles tiverem de para cá voltar... Se lá por Lisboa aquilo não der, eles têm de voltar para aquilo que é deles."
Possivelmente os filhos da tia Martinha não pensarão nessa hipótese, à semelhança de grande parte dos filhos dos habitantes destas terras. O concelho de Pampilhosa da Serra perdeu, entre os anos de 2001 e 2008, mais de 900 habitantes. Os números aumentam de ano para ano, sem esperanças de inversão. Os velhos morrem, os jovens migram e não regressam.
No dia da festa, toda a gente ia de manhã, como sempre, trabalhar nas suas hortas. De seguida, havia missa e era preciso esperar o padre ir embora para se poder ir para o baile, que durava até à manhã do dia seguinte. "Com sapatos novos, era só dores nos pés", lembra Filomena no meio de uma gargalhada. "Nesse dia não havia preguiça!"
O tempo presente
A aldeia de Vale Serrão conta actualmente com 14 habitantes e a dos Lobatinhos com sete. Os domingos festivos de outros tempos extinguiram-se, tal como energia vital que fazia avançar estas povoações. As aldeias são hoje espaços que albergam uma população muito envelhecida que já pouco convive entre si. As pessoas passam agora a maior parte do tempo isoladas nas suas próprias casas.
Tanto a tia Maria como a tia Martinha já pouco vão à vila, Pampilhosa da Serra. Se noutros tempos faziam o percurso a pé todas as semanas, agora a idade e o cansaço transformaram-se em obstáculos para estas viagens. Tanto o Vale Serrão como os Lobatinhos recebem semanalmente a visita de uma comerciante da aldeia de Álvaro. Para muitos dos idosos, esta é a única forma de poderem ter acesso a alimentos e a todos os produtos de que vão precisando. A tia Maria explica: "Ela vem cá procurar-me o que eu quero, umas vezes compro, outras não. Mas é ela que cá vem trazer-me as coisas, porque eu já não sou capaz de as ir buscar."
O mesmo acontece com o pão. Quando se ouve algum carro a chegar e o seu buzinar, os habitantes das aldeias já sabem do que se trata. Saem das suas casas, compram o que lhes convém e depressa regressam às suas quatro paredes. Por alguns minutos reúne-se o povo mas, num piscar de olhos, as ruas voltam a ficar desertas.
É esta a realidade das aldeias do interior do país. Caminham a passos largos rumo à não socialização e, mais, à desertificação. Para quem cresceu num ambiente populoso e festivo, é doloroso ter agora de envelhecer rodeado de silêncio e quietude. O mais pequeno sinal de actividade torna-se motivo de alegria. "Quando estou aqui em casa e vejo fumo a sair de alguma chaminé já fico contente", conta a tia Maria enquanto olha pela janela.
O isolamento de que os idosos são vítimas durante grande parte do ano faz com que se sintam pouco seguros. Enquanto o marido esteve hospitalizado, a tia Martinha passou um Inverno sozinha e, muitas vezes, sentiu medo. "Aqui neste monte de pedras a gente tem medo, claro. Quando está cá mais gente, sentimo-nos logo mais seguros."
O tempo futuro
As duas irmãs já pouco crêem no futuro. Apenas uma coisa as distingue: enquanto que a tia Maria já pouco se mexe, a tia Martinha recusa-se a parar. Para esta última, cada dia é uma luta constante. Entre a casa, o marido, as hortas e os animais, o descanso não existe. Já sem a resistência de outros tempos, entristece-a saber que daqui para a frente a sua autonomia e energia só tenderão a diminuir. Já se desfez de vários animais e já não cultiva na maior parte dos seus terrenos. "Sinto-me triste porque tinha as minhas coisas como os outros e agora já não, já não sou capaz de fazer por elas", explica com um ar desolado.
Quanto ao futuro das aldeias, também já poucas esperanças nele depositam. A tia Martinha é precisa nas palavras: "Isto tem tendências de acabar. Se isto não der para mudar e não vierem mais pessoas, acabando estes velhitos..." A mera mas muito provável possibilidade cala tudo em volta. A sentença é dura. Mais ainda na cabeça da tia Martinha que, consciente dos tempos de crise que se vivem, acrescenta a estas outras preocupações. "Eu já não vejo, já cá não estou. Tenho pena é dos meus filhos, se eles tiverem de para cá voltar... Se lá por Lisboa aquilo não der, eles têm de voltar para aquilo que é deles."
Possivelmente os filhos da tia Martinha não pensarão nessa hipótese, à semelhança de grande parte dos filhos dos habitantes destas terras. O concelho de Pampilhosa da Serra perdeu, entre os anos de 2001 e 2008, mais de 900 habitantes. Os números aumentam de ano para ano, sem esperanças de inversão. Os velhos morrem, os jovens migram e não regressam.
Num ponto perdido no mapa, a tia Martinha continuará a cavar a terra até não mais poder e a recordar, com saudade, a aldeia que a criou. A tia Maria passará o resto dos seus dias sentada num cadeirão dividida entre a vista para o mundo através da televisão ou para o rio através da janela. As duas mulheres, outrora crianças a dançarem descalças nas ruas de um vale cheio, envelhecerão o que lhes falta num lugar cada vez mais esquecido e sozinho. Nos lugares onde nasceram, cresceram, trabalharam, criaram os filhos e os viram partir para as cidades, reina hoje o silêncio. São esses lugares onde o passado se esquece, onde o presente perde importância e onde se teme que o futuro seja mais silencioso ainda.